Hoje é o primeiro dia em que eu me sinto realmente em férias. E já é janeiro. Passou a correria da entrega de notas , reuniões de conselhos de classe, recupoeração, fechamento dos diários de classe, seguida da outra correria, a preparação das festas de fim de ano: as compras, as visitas, a comida, o trânsito, o calor, a árvore a ser arrumada …Mas, hoje, finalmente em férias, posso começar a escrever outra vez.
Humm, estou sentindo um cheiro estranho. O que poderá ser? Nossa! Esqueci o feijão no fogo! Queimou. Lá se foi o meu almoço.
Tudo bem. Faço um sanduíche, mas começo a escrever este novo livro.
Ó ilusão! Agora ouço um barulho. Será a campainha? Sempre posso fingir que não há ninguém em casa. Mas não é a campainha. O barulho continua, sempre igual e nos mesmos intervalos de tempo. Ah! é o telefone. Já tocou umas dez vezes. Talvez seja algo importante. Será que aconteceu alguma coisa com as crianças e estão querendo me avisar? É melhor atender logo.
-Alô! Bom dia, mãe… O quê? Tenho de ir aí pra ver o que está acontecendo? (Suspiro.) Tá bom, mãe. Já estou indo…
Pois é, acho que vou deixar para escrever amanhã.
Pensando um pouco sobre esse texto que narra o meu dia de ontem, percebo que fui obrigada a interpretar, ou seja, a dar significado a uma série de acontecimentos que invadiram o meu dia e me levaram a abandonar, temporariamente, o projeto de escrever. Vamos destacar alguns.
Primeiro, foi o cheiro ao qual atribuí o significado “feijão queimado”. Em seguida, ao fato de o feijão ter queimado dei outro significado: a perda do almoço.
Segundo, foi o caso do som: associei-o inicialmente à campainha da porta. Percebendo que o som se repetia, sempre igual, e a intervalos regulares, tive a pista para chegar ao seu significado exato: era o telefone que estava tocando.
E assim fazemos o dia todo, a vida toda. A essa atividade de atribuir significados podemos dar o nome de leitura. A leitura, nesse sentido, passa a ser uma atividade bastante ampla: é efetuada toda vez que lemos um significado em algum acontecimento, alguma atitude, algum texto escrito, comportamento, quadro, mapa e até, por exemplo, nas gracinhas de um cachorro. A tudo isso podemos chamar de leitura do mundo. E, para que possamos fazer uma leitura adequada do mundo à nossa volta, é preciso saber observa-lo, recolhendo informações dos mais variados tipos.
Mas voltemos à história inicial. Ao sentir o cheiro, tive uma informação olfativa. Ao ver o feijão queimado grudado na panela, tive uma informação visual. Com relação ao telefone, tive uma informação auditiva. Ao ligar cada informação às minhas experiências anteriores, cheguei ao significado dos acontecimentos. Por exemplo, como já havia sentido antes o cheiro do feijão queimado, identifiquei-o mesmo antes de olhar a panela.
Desse modo precisamos estar atentos a tudo o que acontece a nossa volta e saber que todos os nossos sentidos estão constantemente nos fornecendo inúmeras informações a respeito do mundo. Basta que prestemos atenção a elas.
Neste ponto, podemos ampliar, também, o conceito de texto: em latim, texto significa “tecido” e é entendido como qualquer significado articulado através de uma linguagem determinada. Por exemplo, um quadro pode ser um texto, pois tem um significado articulado através da linguagem da pintura. Um filme, além do texto verbal dos diálogos, apresenta um texto visual, constituído pelas imagens que se sucedem na tela. O mesmo acontece com a televisão. Quantas vezes lemos, isto é, damos um significado às imagens que vemos na “telinha” mesmo que não estejamos ouvindo o som?
Precisamos lembrar, no entanto, que essa tarefa de leitura, de atribuição de significados, depende da vivência de cada leitor, porque é essa vivência que faz cada um de nós observar o mundo de uma forma diferente da dos outros. Toda leitura depende de nossas experiências, idade, sexo, país e época em que vivemos, classe social a que pertencemos, enfim, nossa história de vida.
Vamos considerar, por exemplo, apenas os objetos presentes em nossa vida diária, para poder entender melhor como o significado se modifica de acordo com a situação individual de cada leitor. Examinemos o caso do leite. Para as crianças que moram na cidade, o leite chega embalado, pasteurizado, pronto para o consumo imediato. Para as crianças da área rural, no entanto, o leite é associado à vaca que o produz, ao bezerro que dele se alimenta, ao trabalho de quem o tira, à presença de grande quantidade de nata, à necessidade de ser fervido para não azedar, e assim por diante. Esses diferentes significados atribuídos ao mesmo objeto – o leite – são fruto de experiências de vida diversas entre si.
Concluindo, todos nós, alfabetizados ou não, precisamos aprender a observar o mundo ao nosso redor, aprender a estar constantemente indagando: o que isto significa? O que isto quer dizer? É no momento que nos colocamos essas questões que aprendemos a ler.
Aranha, Maria Lúcia de Arruda. Temas de filosofia. 2ª ed. rev. Moderna. São Paulo, 1998.